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Uma por todas

Brasília (3/12/19) – Cecília é uma mulher que representa muitas. Como tantas de nós, foi criada para ser obediente ao pai, ao irmão, ao marido e — um dia — também aos filhos. Como 70% das mulheres do mundo, foi vítima de algum tipo de violência no decorrer da vida apenas por pertencer ao sexo feminino. Foi ameaçada de morte por um marido, desqualificada por outro e sexualmente abusada na infância. Mas, apesar disso tudo — como cada vez mais mulheres —, conseguiu romper esse ciclo de violência antes que fosse tarde demais. E fez isso com a ajuda do cooperativismo.

“O cooperativismo me salvou”, disse a jovem, que prefere manter o verdadeiro nome em sigilo para proteger a si mesma e ao filho de três anos.

“A independência financeira da mulher é o caminho para o fim da violência! E eu consegui essa independência graças ao cooperativismo. Quis contar minha história para outras mulheres se sentirem fortalecidas também e perceberem que podem andar com as próprias pernas e saírem disso”, reforça.

Cecília teve o direito de ser criança roubado pela violência. Com menos de 5 anos, teve de passar a noite no meio de um matagal, ao lado da mãe e do irmão mais velho. Eles fugiam das ameaças do pai, que prometia, aos gritos, matar a esposa. A separação veio logo, mas a paz, não. Em vez de o divórcio livrá-la da violência, o novo casamento da mãe tornou-se sinônimo de flagelo para a garota. Aos oito anos, ela entrou para uma assustadora estatística: 53,8% das mulheres vítimas de estupro têm até no máximo 13 anos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O padrasto começou a abusar sexualmente da menina. Por medo, ela não contava nada para ninguém, mas sentia que aquilo não estava certo. Queria ir embora daquele lugar. Escapar. E foi.

 

ROTA DE FUGA

 

Antes de completar 16 anos, Cecília foi morar com um homem 24 anos mais velho. Viveu sob três meses na mira das ameaças que o parceiro dirigia a ela. “Apronta comigo pra ver...”, a intimidação chegava com acusações de infidelidade. Ele até comprou um revólver e avisava: uma das três balas da arma seria usada para matá-la. O corpo — ameaçava — seria jogado em poço e ninguém sentiria falta ou procuraria por ela. Apavorada, ela fugiu outra vez. Como vivia no sul do Paraná, atravessou a divisa com o Paraguai e morou por um ano em um abrigo em Assunção, capital do país. Depois, precisou voltar para o Brasil. O único lugar que tinha para ir era a casa da mãe, onde também morava o padrasto, que voltou a atormentá-la.

Precisava sair dali de vez. Em troca de muito pouco, trabalhava como diarista em casas de família. Foi onde conheceu o segundo companheiro, também mais velho. Em menos de um mês, partiu para uma vida a dois com ele. Outra fuga, na esperança de ressignificar o conceito dolorido de família que tinha até então. O agora marido tratava-a bem. E assim foi por alguns meses, até mudar gradativamente de comportamento. Era só aparecer uma oportunidade de briga que o homem a metralhava com xingamentos e humilhações. Munia-se com os episódios de tormento vividos por ela na infância para atacá-la nos pontos de vulnerabilidade. A jovem tinha confiado e aberto a vida para o companheiro. “Migalha” era como ele a chamava; alguém que não prestava e não servia para nada. Ouvir aquilo não causava estranhamento, pois não era a primeira vez. Parecia normal. Apenas uma briga de casal.

Um dia, o insulto veio acompanhado da mão erguida. Um empurrão desnorteou o corpo da moça e do outro ser que ela gestava. A barriga saliente na roupa apontava uma gravidez. Ela o encarou e indagou: “Vai me bater grávida? Não pensa no seu filho?”. Ele recuou. Ela engoliu a seco, pensou no filho e deixou a lamúria presa na garganta.

Era sempre assim depois das brigas: o discurso repetido das reconciliações vinha na voz dele em tom ameno e manso. O rapaz pedia desculpas, mostrava-se arrependido e prometia que não aconteceria outra vez. Ela ponderava e eles seguiam juntos.

O filho nasceu. Cecília se recuperava do parto quando descobriu uma traição. Ela questionou o marido sobre o caso e, em resposta, teve o rosto acertado por socos contínuos. A primeira agressão física. Ele a puxava pelos cabelos, jogava-a no chão e socava-a mais. O resultado foi o rosto e o corpo roxos, além de um corte na cabeça e mais marcas invisíveis a olho nu.

Foi a chegada de uma vizinha que pôs fim à agressão. Machucada, ela catou o recém-nascido nos braços e foi para a casa de uma das poucas pessoas que conhecia — a irmã dele —, que aconselhou: “você devia perdoá-lo”. Sem emprego e sem o apoio de parentes ou amigos, ela decidiu voltar. Mas não voltou só. Carregou consigo um princípio de valentia e o desejo de arrumar um emprego.

 

VIDA NOVA

Cecília voltou para o marido, mas começou a buscar uma saída para si. Entregou dois currículos, a contragosto do cônjuge, que ordenou: “Não entregue mais nenhum. Se te chamarem para algum desses empregos, tudo bem, você pode trabalhar”. Ela acatou e depositou todas as esperanças nesses pedaços de papel. Foi chamada para uma única entrevista, na C. Vale, cooperativa agroindustrial com atuação no Paraná, em Santa Catarina, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, no Rio Grande do Sul e Paraguai.

Chegando à cooperativa, encontrou outras oito candidatas. Acostumada a ser desvalorizada, não achou que tivesse chance. Voltou para casa desesperançada, mas, alguns dias depois, o telefone tocou. Tinha conseguido o emprego e começava a suspeitar de que era capaz de sonhar e alcançar as metas pretendidas.

“A cooperativa não sabia que estava me salvando quando me estendeu a mão”, diz Cecília, agradecida. Isso acontece porque a dependência financeira das vítimas em relação aos parceiros é um dos fatores determinantes para a manutenção dos ciclos de violência, que aprisionam mulheres: 47,3% das que vivem em situação de violência não desenvolvem atividades remuneradas e permanecem dentro de seus próprios lares. Normalmente, no papel de cuidadoras do lar.

Além disso, entre as formas de violência caracterizadas pela Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006), está a patrimonial, definida “como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos”. O controle de finanças pelo parceiro pode, portanto, ser considerado uma forma de violência; a independência financeira é um caminho para rompê-la.

“Ao oferecermos um emprego com todos os benefícios, como vale-alimentação e plano de saúde, a gente empodera e fortalece mulheres que estejam passando por uma situação assim. Isso pode mudar vidas”, destaca Sara Ferneda, assessora de imprensa da C.Vale, que virou amiga de Cecília. Admiradora da força da colega, Sara fez questão de contar a história da moça na revista da cooperativa, para sensibilizar as pessoas sobre o problema da violência doméstica. “Embora a gente nem sempre saiba que uma colega é vítima de violência, o fato de ela fazer parte de uma rede cooperativista faz toda a diferença. Aqui, cuidamos uns dos outros e nos preocupamos com o bem-estar de todos os cooperados e colaboradores.”

 

PONTO FINAL

Antes de recomeçar a vida — longe da opressão do marido —, Cecília ainda teve de enfrentar uma nova agressão. Inconformado com a possibilidade de a esposa ser independente financeiramente, ele passou a implicar com a recém-contratada funcionária da C. Vale. “Está se maquiando para outros homens!”, acusava. Ela respondia que não. Só gostava de sentir-se bonita. Quando ele a ameaçava, a resposta estava na ponta da língua: “Encosta um dedo em mim e eu me separo de você”. Agora empregada, ela tinha condições de cumprir a promessa — o que trouxe certa tranquilidade para a família, sem episódios de violência física por algum tempo. Até “aquela” sexta-feira.

Era madrugada. Três horas da manhã. O casal chegou em casa, depois de ir junto a um bar. Ele queria continuar a diversão entre quatro paredes, ela queria dormir. Incapaz de ouvir um não, ele começou a agredi-la. A moça correu para o quarto do filho. Apoiou o corpo sobre a porta sem tranca, enquanto o marido ameaçava arrombá-la. “Vou derrubar no 3! 1, 2…”. Ela acordou o menino, encaixou-o nos braços, abriu a janela e pulou com a criança no colo antes de o agressor chegar ao três. Lá embaixo, encontrou o portão trancado e pulou o muro, em direção à casa da vizinha. Quando o dia clareou, passou na antiga casa. Enquanto o homem dormia, catou o celular, uma mala de roupas para o bebê e um par de roupas do varal. Partiu para o mundo. Tinha muita vida para conquistar.

 

RECOMEÇO

Não demorou muito para as mensagens de texto dele lotarem o visor do celular dela. Passou a persegui-la e a ameaçá-la. “Você é minha propriedade e vou te levar amarrada para casa!”, escrevia. Apoiada por algumas companheiras de trabalho que sabiam sua história, ela decidiu denunciar o marido. Hoje, tem uma protetiva contra ele e está em processo de divórcio. Tem um lar e consegue pagar as contas. Mas, vale reforçar: essa história poderia não terminar assim. “Se não estivesse trabalhando na C. Vale, ainda estaria casada e sofrendo violência. O cooperativismo me fez um bem muito grande!”

Embora não conheça Cecília pessoalmente, o presidente da C. Vale, Alfredo Lang, orgulha-se de ter dado à moça uma oportunidade de refazer a própria vida. “A gente entende que uma cooperativa precisa ser competitiva para conseguir sobreviver, mas esse não deve ser o seu único propósito. Você precisa gerar oportunidades para as pessoas melhorarem de vida, crescerem profissionalmente. Sem isso, de que vale uma cooperativa forte? Vale mais o que você faz em favor dos outros e não em favor de si mesmo; esse é o legado que uma cooperativa deve deixar!”, argumenta.

É importante esclarecer que essa não é uma história sobre violência contra a mulher, ou apenas sobre isso. Essa é a história de uma mulher que conseguiu mudar de vida quando encontrou uma oportunidade de emprego e renda. Tudo o que ela precisava era de uma chance de conquistar sua independência. Para erguer-se. Para retomar a dignidade que um dia lhe foi tirada.

Olhar para trás é doloroso, mas Cecília respira aliviada e até com certo orgulho, pois consegue dizer para si mesma: “Eu consegui, e vou conseguir muito mais daqui para a frente! Quero ir mais longe”. A moça, de apenas 23 anos, retomou os estudos, pretende formar-se e, um dia, tornar-se uma advogada, para defender a causa de mulheres em situação de violência. “É o meu sonho”, projeta. A jovem também aspira conquistar a casa própria, para viver melhor com o filho e oferecer para ele tudo o que não teve na infância. Hoje, pode atribuir a si um adjetivo antes impensado: livre.

 

A LUTA É GLOBAL

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), no mundo, estima-se que cerca de 70% das mulheres sofrem algum tipo de violência. É mais provável que uma mulher, entre 15 e 44 anos, seja abusada sexualmente e sofra violência doméstica do que desenvolva um câncer, contraia malária ou sofra um acidente de carro, segundo o Banco Mundial.

No Brasil, no ano de 2018, somente o Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher) recebeu 92.663 denúncias de violações contra mulheres, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). E esses números podem ser ainda maiores, já que considera-se que apenas 10% dos casos de violência contra as mulheres sejam notificados no país.

Um dificultador é um problema social privado ao lar: 78,6% das ocorrências de violência acontecem dentro da residência da vítima, de acordo com o Atlas da Violência de 2018, realizado pelo Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). E, em 73% dos casos, os agressores são companheiros ou ex-companheiros, segundo o DataSenado (2015), realizada pelo Senado Federal. (Fonte: Revista Saber Cooperar)

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