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Ney Bittencourt: um visionário que deixou marcas no agronegócio brasileiro

Um homem à frente do seu tempo e preocupado com a sociedade. Era assim Ney Bittencourt de Araújo, engenheiro agrônomo multifacetário que esteve à frente do grupo Agroceres entre 1971 e 1996. Além de empreendedor rural, foi líder e homem público. Sua morte precoce, em 1996 — quando tinha 59 anos —, interrompeu planos e deixou tristeza, mas a sua trajetória ecoa, ainda hoje, como um grande legado. A dedicação de Bittencourt ultrapassou as fronteiras de sua cooperativa e, ainda hoje, serve de inspiração para uma legião de pessoas do agronegócio.
“Ney formou uma geração de lideranças agropecuárias. Pessoas que, mesmo depois de saírem da Agroceres, continuaram atuando e levando a sua visão estratégica de conduzir os negócios”, afirma José Luíz Tejon, que foi diretor de marketing da Agroceres e atualmente dedica-se — entre outras tantas tarefas — à docência nas áreas de Educação e de Agronegócio. “Ney é uma pessoa inesquecível, um gigantesco amigo e espetacular mentor. Era uma pessoa corajosa, com a qual a gente realizava atos de bravura, sempre com um propósito em mente: o bem do país”, recorda com saudade.
A trajetória de Bittencourt gerou um verdadeiro impacto na forma de pensar do agronegócio brasileiro. “Ele tinha uma cooperativa na mão, mas atuava e trabalhava numa dimensão muitas vezes superior à empresa em si. Ele tinha uma visão de praticamente um estadista, como se fosse um presidente da República”’, explica Tejon. “Estar com ele era muito inspirador. Ele era  de uma motivação imensa, dono de uma empolgação enorme!” FILHO DE PEIXE Mineiro de Viçosa, Ney Bittencourt formou-se em Agronomia pela Universidade de Viçosa e em Administração pela American Manegement Association, de Nova York. A perspicácia empresarial corria no sangue. O pai foi o fundador da Agroceres — empresa que colocou no mercado brasileiro os primeiros híbridos de milho. E, como filho de peixe, ele soube como ninguém dar continuidade à proposta inovadora da cooperativa. Investiu na modernização da produção de milho; em sementes de hortaliças, de sorgo e de pastagens; e na suinicultura e na avicultura. Sempre pensava além. [caption id="attachment_75631" align="alignleft" width="193"] Ney Bittencourt de Araújo, fundador da Associação Brasileira do Agronegócio - ABAG (Crédito: ABAG)[/caption]   “Um dos grandes sonhos do Ruy era ver o Brasil dominar o conhecimento e o desenvolvimento da genética e da produção em todo o cinturão tropical planetário”, lembra o amigo Tejon. Visionário que era, Bittencourt lutou por isso e deixou as suas contribuições. Não à toa, Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, organizou um livro todo dedicado a ele. Na obra Dínamo do Agribusiness, lançado em 1995, mais de cem pessoas destacaram as contribuições de Ney ao agronegócio brasileiro. “Ney tinha uma curiosa característica: quem o visse ou ouvisse uma única vez em um seminário, numa conversa ou num debate, guardaria dele para sempre a impressão marcante de semeador formidável. Semeador de ideias que, se a convivência continuasse, germinariam facilmente em magníficas proporções”, escreveu Rodrigues na apresentação da obra.
Incansável, era aquele tipo de pessoa que não parava. Estudioso, disciplinado e autodidata, os amigos contam que ele abria a empresa logo no início da manhã e só saia ao entardecer. E, quando chegava em casa, finalmente, preferia dedicar-se à leitura do que se render ao descanso.
Participava de inúmeros seminários e debates mundo afora. Na década de 1970, já defendia que a forma de pensar a agricultura e a pecuária no Brasil tinha de ser revista. Os métodos tradicionais, para ele, não condiziam com a necessidade do país nem com o papel fundamental que ele tinha no mundo. Era necessária a orquestração de toda a cadeia produtiva, de uma forma sistêmica, que percebesse que a economia agrícola ultrapassava a produção dentro da fazenda. NO MESMO BARCO Ney entendia que a agropecuária era o elo de uma cadeia que movia a ciência, a tecnologia e a indústria. Foi na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, que conheceu o conceito de agronegócio — termo que advém da palavra inglesa agribusiness e engloba todas as operações da atividade agrícola, desde a produção até o varejo. Para Ney, essa “era a pedra fundamental para a construção de uma sociedade justa”.   “Ele foi o primeiro a trazer essa ideia para o Brasil”, conta o engenheiro agrônomo e consultor Ivan Wedekin, outro amigo que se lembra com orgulho de Ney. “No Brasil, esse conceito nasceu em uma cooperativa [Agroceres], e não na Universidade”, argumenta. Wedekin tornou-se assessor econômico da Agroceres em 1984 e participou, ao lado de Ney, de seminários em Harvard. Ele se lembra com gratidão daquela época: “Ney podia ter nos colocado para produzir resultado e vender, mas ele dava um tempo para nós estudarmos”. Dessas imersões e dessa relação intelectual, Wedekin e Ney — com Luiz Antonio Pinazza — tiveram a ideia de escrever o primeiro livro nacional sobre agribusiness no Brasil. A obra Complexo agroindustrial: o agribusiness brasileiro foi lançada em 1989. “Todo esse nosso trabalho inicial foi de garimpagem de informações”, explica. “Nós sabíamos da importância e da força do conceito. Tínhamos claro que deveria existir uma convergência de interesses, que não se justificava um conflito entre o agricultor e a cooperativa e a indústria de sementes, por exemplo. Sabíamos que todos estavam no mesmo barco”, acrescenta. “A partir daí, esse conceito se espalhou pelas universidades e faculdades brasileiras, e hoje temos dezenas de MBAs e pós-graduações em Agronegócio. A partir dessa contribuição, nós saímos da era da agricultura para a era do agronegócio”, comemora.
Bittencourt escreveu outros tantos livros e artigos. “Ele tinha essa visão acadêmica. Participava dessa articulação entre o setor privado e o educacional”, pontua Wedekin. O ex-presidente da Agroceres também foi, entre outros, conselheiro de órgãos como o Ministério de Ciência e Tecnologia e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
“Ele era superespecial, e tenho um sentimento de uma perda muito grande de ele não ter visto todo o sucesso do agribusiness. Mas a semente que ele plantou está aí, vigorosa”, afirma Wedekin. O consultor completa: “é uma pena que o Ney não tenha vivido essa pujança do desenvolvimento do agronegócio brasileiro, que aconteceu a partir da estabilidade da economia, que veio em 1994, com o Plano Real, e depois, com a mudança do regime cambial. Ele morreu antes de o Brasil  se transformar em um dos maiores exportadores mundiais, com o maior saldo da balança comercial agrícola do mundo”, analisa. Tejon acredita que, se Ney estivesse vivo, teria dado outras grandes contribuições ao agronegócio brasileiro. “Os fundamentos de agribusiness ainda não foram completamente dominados no Brasil. Nós tivemos um grande desenvolvimento por meio do cooperativismo, uma vez que as cooperativas se transformaram em cooperativas agroindustriais, e não apenas cooperativas de produção. Mas essa realidade ainda não se aplica a todo o setor do agronegócio”, enfatiza. [caption id="attachment_75630" align="alignnone" width="750"] Crédito: Shutterstock[/caption]   VISÃO HUMANISTA Com uma visão humanista de conduzir os negócios, Ney Bittencourt se comunicava com todo o campo e os centros urbanos. Queria contribuir com o crescimento do país. Sua preocupação era econômica e social. Preocupava-se com o alimento que chegava nas casas brasileiras. “Sempre esteve ligado à formulação de propostas e políticas agrícolas no Brasil. Participava de reuniões com órgãos do governo e todo mundo que traçava a política agrícola brasileira”, relembra Wedekin. Ney liderou, em 1993, a criação da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG) com o objetivo de difundir o conceito de agronegócio e destacar, junto a governo, iniciativa privada, entidades de classes e universidades, a importância do trabalho de gestão e gerenciamento de todo o sistema agroindustrial.
Para ele, o agronegócio poderia contribuir com a organização do processo de desenvolvimento sustentado, a integração à economia internacional, a eliminação das profundas desigualdades de renda e dos bolsões de miséria, e o respeito ao meio ambiente.
Ele participou, também, da direção e do conselho de outras 20 entidades nacionais e internacionais ligadas ao agronegócio. Fora do trabalho, era um homem que gostava de música, arte e cultura. “Era muito otimista, um grande contador de causos. Com ele não tinha falta de assunto, gostava de um whisky, da conversa em torno da mesa do bar”, diverte-se Wedekin. Tejon também se lembra de Ney assim. Recorda as noites em que tocava o violão, com o amigo ao lado a cantarolar. “Uma das maiores sortes da minha vida foi ter convivido com o Ney. Era uma personalidade que reunia talento técnico com uma extraordinária visão humana”, avalia. “Graças a ele, fui estudar em Harvard. Fui estudar em Nova York, conhecer o mundo, fazer negociações na Índia”, acrescenta. Daquela época, no entanto, só sobrou um arrependimento: “eu podia ter prestado ainda mais atenção no Ney, porque era simplesmente gigantesca aquela experiência da Agroceres e do convívio com ele”, conclui Tejon.
Esta matéria foi escrita por Tchérena Guimarães e está publicada na Edição 29 da revista Saber Cooperar. Baixe aqui a íntegra da publicação 
 

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