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De professora à rainha da soja

De um dia para o outro, ela viu tudo mudar. Ela que já havia compartilhado tanto os seus conhecimentos nas salas de aula, agora precisava se tornar novamente aprendiz. "Não foi fácil", lembra Cecília Falavigna, 75 anos. Cecília viu sua vida se transformar completamente quando perdeu o esposo, há 22 anos. Até ali, era ele que comandava os negócios da família no campo, em uma propriedade rural em Floraí, município a 50 quilômetros de Maringá, no estado do Paraná.

Professora de matemática e ciências no ensino fundamental, Cecília não acompanhava de perto os negócios do marido João Antônio Falavigna, no setor agrícola. Era ele quem cuidava dessa área desde que se conheceram, ainda muito jovens. Quando João adoeceu, ela deixou a carreira de lado para poder acompanhá-lo nos tratamentos. Mas mesmo lutando contra um câncer por mais de dois anos, João fazia questão de continuar administrando a propriedade. “Ele era muito trabalhador e trabalhou até o dia da morte. Ele chamava o empregado, dava as coordenadas. Eu nunca mandava ou pedia nada. Era ele quem fazia isso", recorda.      

Quando o esposo faleceu, Cecília se viu diante de um momento delicado. Com três filhos adolescentes – Ana Cláudia, Mara Sandra e Paulo César – tinha de decidir o que fazer com as terras deixadas pelo marido. Precisava, também, cuidar de todo o restante sozinha. Uma das filhas, com Síndrome de Down, exigia mais dedicação e cuidados especiais. Além disso, Cecília não tinha o apoio da família para levar os negócios em frente e nem conhecimento suficiente sobre o agronegócio . “Outra dificuldade foi essa. Não sabia como fazer. Porque quando a mulher acompanha o marido nas atividades dele, ela tem um caminho a tomar, um rumo pra seguir. E eu não tinha”, lembra. 

Muita gente aconselhou Cecília a vender tudo e voltar pra sala de aula. Outros falavam que seria mais fácil ela se dedicar a algo novo e mais “feminino”. Teve gente que sugeriu, inclusive, que arrendasse a propriedade e vivesse de renda. “Eu não sabia nem o que era isso: arrendar as terras”, diverte-se. “Como eu ia deixar alguém administrar se nem eu sabia? Eu não tinha nem ideia do valor da terra também. Como eu ia negociar assim?”. 

Diante de tantas perguntas, a professora decidiu sair de sua casa, em Maringá, e foi a campo tomar conhecimento de tudo. Estava determinada a não deixar as terras nas mãos de outras pessoas. Em meio ao luto, uma semana após o falecimento do esposo, ela aprendeu que as terras de Floraí eram dedicadas à pecuária e à produção de soja e milho.  A família também tinha uma propriedade em Mamborê, a 200 km de Floraí, que estava arrendada para outro produtor.  “Eu não queria me desfazer daquilo que era nosso. Eu pensei: vamos lá saber como é que se faz. Primeiro eu queria conhecer o que era agricultura e depois tocar em frente”.

Mesmo sem o apoio da família, Cecília abraçou o desafio de administrar a propriedade, se reinventar profissionalmente e fazer do campo a sua escola. “Fiquei aprendendo na fazenda de Floraí”. 

 

 A COOPERATIVA [caption id="attachment_75799" align="alignnone" width="512"] Crédito: Shutterstock[/caption]   Com a decisão de que iria continuar com o agronegócio, Cecília passou a frequentar periodicamente o campo para se familiarizar com a rotina e a produção. Contou com o apoio de funcionários antigos e procurou, logo no início, a Cooperativa Agroindustrial Cocamar para auxiliá-la nesse desafio. “Eu disse para a cooperativa: eu estou aqui, preciso do apoio de vocês. Eu preciso de apoio pra poder tocar os negócios da família. Foi aí que comecei. Não tinha noção de quantidade, mas a cooperativa me orientou sobre os alqueires, quanto eu precisava de adubo e de fertilizantes. Esta parte técnica toda ficou por conta da cooperativa”, relata. “A partir daí, também, fui conhecendo sobre o preparo do solo e vi que não tínhamos maquinário suficiente e bom”.

 Foi renovando as máquinas aos poucos. E, com o estímulo da cooperativa, passou a investir mais. “Os equipamentos eram muito ruins, ela melhorou tudo”, conta o filho mais novo, Paulo César, que atualmente está trabalhando na fazenda. “Também investiu muito em tecnologia”, acrescenta.

Além de continuar com as lavouras de soja, milho, e com a criação de gado, Cecília também resolveu começar um novo cultivo. “Para continuar criando gado, teria que ampliar o pasto, o que não era possível. Então, diminuí o gado e, com o apoio da cooperativa, passei a cultivar laranja”.  

Para Paulo, a mãe é uma “heroína”. “Ela não só manteve o que tínhamos, mas aumentou o negócio. A cooperativa ajudou muito nesse processo”, diz o jovem. “Ela foi muito determinada, teve que ter muita garra para levar isso adiante. Acho que ela teve muito medo de perder tudo, manchar aquilo que meu pai deixou”.

Nem todo mundo, no entanto, reconheceu de cara o talento de Cecília para os negócios. No início, ela foi vista com desconfiança por algumas pessoas. “Eu tinha que fazer o meu nome”, conta. Afinal, era uma mulher plantando grãos em um ambiente predominantemente masculino. Sentiu dificuldade até em conseguir financiamentos para continuar investindo na produção. “Recebi vários nãos. Mas pensava: se eu não consegui aqui, consigo lá. Nunca tive medo. Eu sempre enfrentei, sempre fui atrás”, lembra.  “Então, quando você consegue ser honesta e ser justa, ir em frente e mostrar para a ala masculina e para o outro que você é corajosa, eles passam a confiar em você”. 

Dona Cecília, como é chamada pelos sete funcionários da fazenda, foi se empenhando, aprendendo e ganhando cada vez mais gosto pelo trabalho. O resultado não poderia ser diferente: hoje ela é referência em produtividade e acumula vários prêmios no currículo. Já é tricampeã no concurso de máxima produtividade em soja promovido pela Cocamar. No primeiro ano que participou da premiação, em 2012, produziu 74 sacas de soja por hectare. Nesta colheita de 2018, a produtividade foi de 95 sacas – o equivalente a 5,7 toneladas de grãos –, um aumento de quase 30% em relação ao primeiro ano. “As médias dela sempre são bem maiores que a média da região. Ela sempre está atrás de inovações”, afirma Valdecir Gasparetto, engenheiro agrônomo e assistente técnico da família Falavigna há 10 anos. 

RAINHA DA SOJA [caption id="attachment_75802" align="alignnone" width="2048"] Arquivo Pessoal[/caption]   De tanto ganhar prêmios pela produtividade de suas terras, Cecília passou a ser conhecida no setor como “rainha da soja”. O título foi concedido após ela ganhar a premiação de uma multinacional que avaliou a safra de grãos em 2015/2016. Nessa safra, ela produziu 92,9 sacas de soja por hectare de terra — a média nacional era de 48,9 sacas por hectare, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O segredo para tantos prêmios? “Primeiro é preciso confiar naquilo que você está fazendo e no que quer. Segundo é estar dentro de uma cooperativa que te dá todo o apoio e confiança”.

Essa confiança, aliás, acompanha a rainha da soja até nos dias de seca — como estes do meio do ano.  “A gente tem sofrido bastante com o clima. Mas se você está usando um produto apropriado pra seca, a plantação vai resistir”. A produtora é categórica: “Não existe terra ruim, existe terra mal cuidada. O importante é entender que não se pode só tirar da terra; é preciso devolver algo para ela, colocar algo a mais. A produção tem de ser sustentável”, afirma. 

Cecília usa os melhores produtos e investe bastante em tecnologia. O agrônomo Valdecir, que auxilia a família nos negócios, explica: “Fazemos um trabalho de constante correção física e química do solo”. 

Sempre otimista, a antiga professora sempre quer produzir mais. E garante que a competição é interna. “Eu não quero ser melhor que ninguém. Quero mostrar para as pessoas que trabalhando e fazendo as coisas corretas, você consegue o que desejar”. 

O trabalho é em conjunto. Gasparetto enfatiza: “Dona Cecília valoriza os funcionários e todos que estão envolvidos. Ela chama a gente de ‘meus meninos’ e faz questão de dizer que não consegue nada sozinha. Ela é uma excelente produtora”. E o filho reafirma: “Não existe distinção entre os funcionários. Para ela, são todos iguais”.

Recentemente, para facilitar a gestão, a rainha da soja vendeu a fazenda em Mamborê e comprou outra bem próxima da propriedade de Floraí. E quem diria? Foi ficando tão experiente que hoje está, até mesmo, arrendando a terra para os outros.

COTIDIANO [caption id="attachment_75801" align="alignnone" width="1024"] Arquivo Pessoal[/caption]   Cecília mora na cidade de Maringá com Mara, a filha com Síndrome de Down. Na cidade, costuma acompanhá-la em suas atividades diárias. Mas toda semana vai para a “roça”, como chama a propriedade de Floraí. No campo, fica cerca de três dias por semana. Em períodos de colheita e plantação, passa até mais. “Eu sou apaixonada por aquilo que eu faço. E o dia que eu não vou pra roça, fico pensando: ah, eu tenho que ir lá. Eu tenho que ver a colheita”, diverte-se. 

Na fazenda, as tarefas começam logo quando o sol nasce. Ela acorda bem cedinho e vai para a parte superior da casa. De lá, pode avistar uma represa grande e localizar os funcionários cumprindo as atividades planejadas no dia anterior. Acompanha o plantio, a colheita e vai observando as necessidades que vão aparecendo. Atualmente, está mais à frente da parte administrativa. 

Há oito anos, a rotina está menos intensa. Cecília vem contando também com o apoio diário do filho. “Meus pais diziam que era para eu estudar e me formar primeiro e depois, se eu quisesse, voltava”, conta Paulo. “Aí, devargazinho, fui voltando”. E não se arrepende. O sentimento da mãe já o contagiou. “Pela paixão dela, eu também gosto demais. Gosto muito de estar lá no dia a dia”, conta. 

Essa paixão, Dona Cecília deixa transparecer até na voz. É só trocar algumas palavras com ela para perceber. É daquelas pessoas que a gente fica com vontade de sentar para tomar um café, ouvir os “causos” e aprender um pouquinho. A agenda, no entanto, não parece tão simples quanto ela. Marcar essa entrevista não foi tão fácil: os dias estavam corridos devido à colheita do milho. Além disso, surgiu uma viagem de  negócios de última hora na semana da reportagem.

Cecília conta que, nesta época de seca, apesar da poeira e de voltar toda “marrom” das terras, o cheiro por lá está incrível. Orgulhosa, diz que está tudo perfumado com as flores das laranjeiras que ela plantou. Hoje, já são 14 mil pés. O grande orgulho dela, na verdade, é ser agricultora. Para Cecília, esse trabalho vai muito além do lucro e de premiações. Existe também uma responsabilidade social. “Falta muita comida nesse mundo, é tanta gente passando fome... Então, eu penso nisso: pelo menos um grãozinho da minha soja pode alimentar alguém. Nosso Brasil é sustentado pela agricultura, e eu me orgulho muito de pensar que é o agricultor quem segura as pontas do país nesses períodos difíceis”. 

Bem articulada, educada e cheia de energia, não para de fazer planos. Se no ano passado a colheita foi de 95 sacas por hectare, agora busca um novo recorde para a próxima safra: 104 sacas. “Não é fácil. Vamos ver. Mas eu coloquei esta meta”. E Cecília sabe muito bem de onde vem essa determinação. “Essa força vem de Deus. Essa força que tenho de produzir, de ser melhor, é de algo superior”, conclui.  E quem se atreve a dizer que ela não vai conseguir?


Esta matéria foi escrita por Tchérena Guimarães e está publicada na Edição 23 da revista Saber Cooperar. Baixe aqui a íntegra da publicação 


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